Vocação Hermeneuta

Irmãos, espalhem a palavra :-)

 No princípio, Deus criou o Bit e o Byte. E deles criou a palavra. E nada mais existia. E Deus separou o Um do Zero; e viu que era bom. E Deus disse: "Que os dados existam, e vão para seus lugares devidos",  e criou os disquetes, os discos rígidos e os discos compactos.

E Deus disse: "Que apareçam os computadores, e sejam lugar para os disquetes, e para os discos rígidos, e para os discos compactos".  Então Deus criou o software. Mas Deus criou os programas; e disse: "Vão, multipliquem-se e encham a memória". E Deus disse: "Vou criar o Programador, e ele irá governar os programas e a informação". E Deus criou o Programador, e meteu-o no Centro Informático; e Deus mostrou-lhe a estrutura do "DOS" e disse: "Podes usar todos os diretórios e subdiretórios, mas NUNCA UTILIZARÁS O WINDOWS".

E Deus disse: "Não é bom para o Programador estar só". E Ele fez a criatura que iria olhar para o Programador e admirá-lo, e amar as coisas que ele faz. E Deus chamou-a "Usuário". E foram deixados sob o "DOS" e era bom.

Mas BILL era mais esperto que as outras criaturas de Deus. E BILL disse para o Usuário: "Foi mesmo assim que Deus disse, que não podias rodar nenhum programa no WINDOWS? Como podes falar de algo que nunca experimentaste? No preciso momneto em que rodares o WINDOWS, tornar-te-ás igual a Deus. E poderás criar tudo o que quiseres com um
simples clique do mouse". Então o Usuário instalou o WINDOWS, e disse ao Programador que era bom.

O Programador começou a procurar por novos 'drivers'. E Deus perguntou-lhe: "Que procuras?" E o Programador respondeu: "Estou à procura de novos 'drivers' que não encontro no "DOS". E Deus disse: "Quem disse que precisavas de novos 'drivers'? Rodaste o WINDOWS?"

E Deus disse ao BILL: "Serás odiado por todas as criaturas. E o Usuário estará sempre zangado contigo. E venderás o WINDOWS para  sempre".

E disse ao Usuário: "O WINDOWS irá desapontar-te e comer toda tua memória; e terás que usar programas nele, e irás adormecer em cima  dos manuais".

E disse ao Programador: "Todos os teus programas para WINDOWS terão  erros e irás corrigí-los até o fim dos teus dias."

E Deus expulsou-os do Centro Informático, fechou a porta e colocou uma 'password': GENERAL PROTECTION FAULT

                        Renato Sabbado Cruz
                 E-mail: rsabbado@hotmail.com


Esta é uma alegoria mais perfeita do que aparenta. O sistema operacional DOS é uma árvore de palavras (comparável à Árvore da Vida); o WINDOWS, uma árvore de ícones (semelhante à Arvore do Conhecimento do Bem e do Mal, do mito biblíco). O Programador e o Usuário representam as atitudes protética e reativa diante da máquina e da cyborgização. E a serpente? Bill Gates é o ícone do Capital, diabolizado pelos seus próprios programadores (1)

Resta apenas saber o que foi comemos a título de Fruto Proíbido.

Porém, o mais interessante, nesta curiosa exêgese do Gênesis, é que 'corrigindo os erros' de nosso sistema icônico (ou imaginário) vamos conseguir sair do universo do ruído e readiquirir a senha de volta à Utopia. Como no filme Matrix, é como se acordassemos de repente em uma outra realidade e descobrissemos o que acreditavamos ser 'nossas vidas' era apenas um sonho programado, induzido por drogas e hipnose audiovisual.

Quando imperava a Escrita, o texto reinava sobre um imaginário recalcado e todo ruído era exorciado da produção de significação. Mas é agora? Neste universo de ícones e metáforas em que decaimos o ruído é imanente ao sentido. As imagens são feitas de ruídos. Ruwindows, se pensarmos em janelas lógicas. Ou em 'árvores de janelas', em oposição às 'árvores de caminhos' das letras hebraicas na Cabala.

Utilizando o método de exêgese dos quatro níveis da Hermenêutica, chegamos a três questões e uma proposta:

Questão Sígnica: como "uma imagem vale por mil palavras", gastamos muito mais memória com imagens do que com signos escritos. Por isso, a palavra ainda guarda seus encantos, porque ela permite uma informação simplificada em menos tempo que a visualização. Por isso também a comparação recorrente entre a escrita e a redação de scripts de programação em linguagens de alto nível e a polêmica sobre exclusão tecnológica e ciberanalfabetismo (2).

Questão Simbólica: as duas árvores binárias (de palavras e de imagem) são sistemas de classificação arbitrários em relação ao ruído e a verdadeira autoorganização cognitiva. Por isso, já existem programas, como The Brain (3), que duplicando todos arquivos do sistema operacional em árvore, simulam a interconexão múltipla de todas as referências internas (arquivos de diferentes aplicativos) e externas (emails, hps, news) em novos conjuntos temáticos. Cruzar referências aleatórias em associações múltiplas, no entanto, não dá as máquinas a capacidade criativa do hemisfério esquerdo. O aleatório do mecânico não é criativo quanto o ruído biológico (4).

Questão Paradigmática: como este retorno a um universo cognitivo visual, agora de forma complexa e desterritorializada, influencia nossa percepção do espaço/tempo. O gênero literário conhecido como 'ficção científica' tornou-se um campo privilegiado de reflexão sobre as idéias de utopia, tempo e máquina. Aliás, costuma-se dividir o gênero em paradigmas a partir dos diferentes arranjos destes elementos. O primeiro paradigma (Julio Verne e Wells da 'Máquina do Tempo') sonhavam com uma utopia tecnológica do futuro como uma sociedade igualitária e justa mas desprovida de sentimento. Já o segundo paradigma vai projetar uma Distonia Tecnológica, ou seja, uma sociedade dominada pelas máquinas, em que o homem é oprimido e escravizado (Aldous Huxley, George Orwell e Cia).

Nessa segunda concepção, a humanidade e a verdade estão perdidas no passado. É as máquinas dominam os homens através de sua falta de memória. No primeiro paradigma, o tempo é era histórico, linear e contínuo; maravilhava-se com uma sociedade sem trabalho manual nem luta de classes econômicas. No segundo paradigma, o tempo será sincrônico, instantâneo, as máquinas utilizam-se do tempo da simultaneidade para dominar os homens através do esquecimento serão um tema recorrente. As máquinas aqui são os vilões da história.

Os filmes de ficção científica com o tema de retorno do futuro para o presente (como no Exterminador do Futuro) e com cyborgs, principalmente Blader Runner, abrem uma terceira etapa do gênero: o paradigma do paradoxo temporal e da fusão homem/máquina. Nele, encontramos tanto a compreensão de que a tecnologia tanto pode ser utilizada para o bem-estar ou para o controle (presentes nos trabalhos de Rosnay, Levy e André Lemos) quanto a mesma idéia de que a simulação virtual do futuro está mudando nossa atualidade (Latour e Paulo Vaz), de que vivemos agora em um tempo contínuo e sincrônico, simultâneamente.

A chave para o futuro está no presente e no uso que fazemos da tecnologia.

E esta é minha proposta: a Anatomia do Ruído está no ar. Precisamos decifrar código, dizer a senha e salvar o futuro, não das máquinas e da mecanização, mas de nossa própria ignorância e animalidade. 


Natal, junho de 1999
 
ohermeneuta@zipmail.com.br

O HERMENEUTA
INDEX
PRIMEIRO CAPÍTULO

NOTAS

(1) Refiro-me aqui a uma brincadeira embutida no Office, um game oculto que os programadores da Microsoft esconderam no Excel, em que Bill Gates aparece como Diabo.

(2)  V. Manifesto do Movimento dos Sem-Tela. Rede Telemática de Direitos Humanos -DHNet.

(3) Para 'baixar' o programa The Brain acesse o site da Natrificial. O programa duplica a pasta meus documentos em 'meus pensamentos' (my brians) e passa a reorganizar todas as referências internas (arquivos) e externas (endereços) de acordo com grupos temáticos, tentando, assim, simular a função do lado esquerdo do cérebro diante do pensamento racional e da organização binária em árvores. É evidente que trata-se apenas de um recurso de ampliar a criatividade e não de engendrá-la a nível de inteligência artificial. Ele facilita uma organização não burocrática (em pastas) das informações, mas nem de longe intue ou sente quando uma associação é pertinente ou absurda.

(4) Confira as pesquisas atuais sobre ruído no desenvolvimento do cérebro no Laboratório de Psicofisiologia da UFMG.