A Semiética do Diabólico

Surpreende o fato das palavras ‘diabo’ e ‘demônio’ não terem nenhuma relação original, nem na tradução grega nem nos possíveis originais hebraicos da Bíblia. Nos evangelhos do Novo Testamento, também as duas noções aparecem de forma distinta, pois enquanto os demônios ou espíritos impuros formam uma legião e são forçados a obedecer ao poder do Cristo, como no episódio do possesso de Gérasaem que os força a ‘entrar’ em uma manada de porcos que morrem afogados (1); o diabo é um príncipe, o único anjo decaído e desempenhará um papel de rival poderoso e tentador no episódio narrado a seguir (2).
  

Em seguida, foi Jesus levado pelo espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo adversário. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites. Depois teve fome. Então se aproximou o tentador e disse-lhe: “Se és filho de Deus, manda que estas pedras se convertam em pão. Respondeu-se Jesus: “Está escrito: Nem só de pão vive o homem, mas da palavra que sai da boca de Deus”. Ao que o adversário o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo e disse-lhe: “Se és filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Recomendou-te a seus anjos que te levem nas  mãos, para que não pises em alguma pedra .Replicou-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor, teu Deus”. De novo o adversário o transportou a um monte muito elevado, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e sua glória, e disse-lhe: “Todas estas coisas te darei se, prostrando-te, me adorares”. Disse-lhe Jesus: “Vai para trás, Satã, porque está escrito: Ao Senhor, teu Deus, e só a ele darás culto”. Então o adversário o deixou e eis que vieram os anjos e o serviram. (3)


A palavra ‘diabo’ é a tradução grega do ‘satanás’ hebraico, que significa ‘opositor, adversário, inimigo’. Já a palavra ‘demônio’ significa ‘gênio, espírito, inteligência’. Sócrates, por exemplo, dialogava com seu ‘Daimon’ como se fosse seu anjo de guarda. A unificação destas duas idéias em um único arquétipo se deu por ocasião da Inquisição e do aparecimento do inconsciente individual. Desde então o diabo/demônio passará ocupar um local simbólico ao mesmo tempo oculto e central, não apenas no interior da ideologia cristã, mas sobretudo no espírito capitalista.

Hoje, o diabo simboliza a sexualidade desregrada, a rebeldia e a prática do mal. Os junguianos, diante desta carta do Tarô, vêem a encarnação de nossa sombra ou a projeção de nossos defeitos nos outros. O diabo é, ao mesmo tempo, revolta e resistência; Lúcifer, aquele que como Prometeu trouxe a luz aos homens, e Belzebu, senhor dos reinos ctônicos e infernais, onde os pecadores são punidos pelos seus crimes.

 Neste ponto, a contribuição de Max Weber, que, ao estudar o papel da ética protestante na formação do espírito capitalista, apontou como o arquétipo passou a desempenhar uma função positiva nos países de cultura anglo-saxã, pois, ao contrário dos países latinos-católicos, o diabólico tornou-se um fator constitutivo de uma nova racionalidade e de uma nova forma de organização do tempo subjetivo voltada exclusivamente para o trabalho. Na prática discursiva, a confissão - como demonstrou Foucault - transformou-se no principal critério de verdade. E o diabo era sempre a verdade a ser confessada à razão. O irracional, o aleatório, o acaso eram sempre atribuídos à desorganização diabólica do mundo. Entretanto, tanto Weber como Foucault tangenciaram a importância do diabo em si, como arquétipo do desencantamento, como símbolo estruturante de nossa contemporaneidade moderna.

 Alguns autores contemporâneos (4) pensam resolver o problema através do estudo do símbolo da Serpente. Nesta ótica, o diabólico seria uma memória ancestral atávica, de cunho ontogenético, proveniente da época em que o Homem ainda rastejava em sua evolução. O diabo, assim, seria uma lembrança de uma animalidade não-mamífera, onde os instintos não se misturariam com as emoções. Este nosso lado réptil, de sangue frio, teria sido representado quase que universalmente pela serpente (e também pelo Dragão nas culturas chinesa e celta) como um símbolo da fecundidade e, transformado pelo cristianismo, marca da sexualidade decaída. O diabólico seria, nesta versão, a lembrança de um sexo sem sentimentos, dos instintos sem afetividade dos invertebrados. O mal é uma memória de um padrão de comportamento frio e impessoal com o mundo.

Porém, para descortinar o verdadeiro sentido do arquétipo diabólico é necessário dissociá-lo do demoníaco ou dessexualizá-lo, pois enquanto o diabo estrutura um sentido mais distante e profundo, o demônio é uma representação da sempre passageira energia psíquica. Um bom exemplo de um demônio não-diabólico seria Exú, do candomblé afro-brasileiro, mensageiro dos orixás - uma entidade amoral e volúvel, disposta a prestar qualquer favor em troca da satisfação de seus apetites. Neste sentido também, muitos autores orientais reduziram o ‘demoníaco’ e a serpente cristã ao ‘kundalínico’, a um ente energético de desejos, de quem o espírito toma consciência (Iogananda, Osho, Reich).

 E o ‘Diabolus-Satanás’? Qual seu significado próprio? Talvez, no melhor livro já escrito a respeito, As origens de Satã, a historiadora Elaine Pagels (5) detalha a construção do mito bíblico de Satanás, observando como sua figura evolui de simples servo de Deus (no Livro dos Números, onde aparece pela primeira vez) para o príncipe de um reino das trevas e adversário sobrenatural do Cristo. Segundo ela, o significado original da palavra Satã deriva da raiz hebraica ‘stn’ que significa “um que é contra ou obstrui”. Daí a presença do personagem Satanás nas narrativas mais antigas era usada para explicar obstáculos e revezes inesperados da fortuna. Geralmente, atribuía-se o infortúnio ao pecado humano. Neste contexto, Satanás não seria maligno sendo apenas um veículo da justiça divina. E mesmo no livro de Jó, no episódio da aposta de Deus com o diabo, onde Jeová permite que a desgraça se abata sobre um justo; Satã representa um elemento aperfeiçoador do espírito humano. Para Pagels, com o advento do Cristianismo, Satanás foi vítima de um antropomorfismo radical, passando a desempenhar um novo papel explicativo da realidade. É que devido à ruptura étnica do cristianismo com a cultura judaica e a sua expansão transnacional como religião, Satanás tornou-se um paradigma de combate político, que divide o mundo entre eleitos e possuídos. Após dois mil anos de construção do arquétipo diabólico, a idéia de conflito moral foi gradativamente introjetada de tal forma que construiu a idéia de um ‘inimigo estrutural’ no inconsciente coletivo da sociedade ocidental.

  • ARQUÉTIPO DO IRRACIONAL
 Aliás, esta idéia está presente na própria etimologia das palavras que usamos sem perceber nesses dois mil últimos anos: ‘Dia-Bólico’ (o que aparta, separa, divide) é o contrário do ‘Sim-Bólico’ (o que unifica, sintetiza, reúne). A memorização contínua deste conflito primordial entre o correto e o erro na luta da ortodoxia cristã contra as suas numerosas dissidências forjou, segundo Pagels, uma visão moral da história como uma luta do bem contra o mal que enquadra discursos secularizados como o do marxista ortodoxo ou o do físico moderno - que vê o universo como uma explosão de luz em um espaço de buracos negros. É como percebeu sabiamente Charles Baudelaire:“O artifício mais hábil do diabo é convencer-nos de que não existe” (6).

Mas, exatamente, o que a ciência tem de diabólica? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a própria Igreja nunca deixou inteiramente de ver no aparecimento da ciência como um feito diabólico muito mais nefasto que o próprio capitalismo. Aliás, podemos dizer que a ciência iniciou-se como uma negação metodológica do deus medieval. Isto não significa que Descartes, Newton ou Kepler fossem ateus - o que, aliás, é uma das inverdades que historiadores da ciência tentaram defender. Significa apenas que a idéia de Deus era um dos principais obstáculos epistemológicos ao aparecimento da ciência. Por isso, “Deus morreu” - como decretou Nietszche; e quem O matou foi o conhecimento científico - poderíamos completar (7).

 Em seu último livro teórico, Jung (8) observa através de estudo exemplar do símbolo dos Peixes, dos diversos apocalipses escritos por volta do ano zero e de outras referências da mitologia medieval, a relação entre o Cristo e o Anti-Cristo. Segundo esta hipótese, os primeiros mil anos da Era de Peixes seriam regidos pelo simbolismo solar e luminoso do Si Mesmo, enquanto os últimos mil anos corresponderiam ao ‘domínio da besta’ e à ascensão de valores violentos e materialistas. Repensando essas referências, Serres (9) diz que, atualmente, “o buraco negro é o centro do mundo”. No primeiro milênio, o mundo tinha um centro luminoso e o universo medieval se organizava em torno de um eixo ascensional que une a terra aos céus. A luz reinava absoluta no imaginário. Na idade moderna, no entanto, justamente quando os historiadores renascentistas viram o fim das trevas, este centro desloca-se para o invisível, para escuridão das densidades mais pesadas. O iluminismo obscureceu as idéias do Homem. O centro, então, não é mais o Self e a identidade sagrada, mas o Outro e suas diferenças. E esta é a segunda razão da associação entre o diabólico e o científico: o fato da ciência ser um saber onisciente, onde o sujeito se aliena de sua percepção e se vê fora de si. Lembramo-nos aqui do demônio de Laplace, que o possibilitava ver a situação em que se achava inserido do lado de fora. Para chegar a esta ótica alienada e objetiva de si, a ciência se fez uma verdadeira advogada do diabo, no sentido de questionar implacavelmente a realidade percebida até despojá-la de qualquer subjetividade. E este ‘olhar através do outro’ é que será o fundamento não apenas da objetividade do discurso científico mas da imagem reflexiva que a cultura moderna faz de si mesma.

 O terceiro e último dos motivos da associação diabólico-científico é a proposta de Mefistófoles ou a morte da Morte. Nas diversas versões do Fausto (Marlowe, Goethe, Thomas Mann), o pacto diabólico se dá em torno do desejo humano de se eternizar. Seja em troca da vida eterna, da beleza ou do conhecimento; é sempre a alma, o ‘coração’, núcleo dos sentimentos humanos, a contrapartida exigida. Nesta metáfora do científico, o diabólico seria uma suprema subversão do espírito humano, que tornou-se inumano em troca do domínio utilitário sobre a natureza e o tempo, como no romance Retrato de Dorin Gray de Oscar Wilde.

A modernidade é um pacto diabólico. No entanto, o aspecto mais maligno do pacto diabólico da modernidade foi firmado por cientistas cépticos, incapazes de perceber o arquétipo que os possuía. Eis aqui mais uma das ironias do destino! Muitos já foram os poetas que se detiveram no mito diabólico: Valery, Blake, Milton, Dante, Vinícius de Morais; mas foram os cientistas que lhe venderam a alma e passaram a descrever o mundo como se estivessem do “lado de fora”.

  • ERROS DE INTERPRETAÇÃO
No âmbito das ‘ciências do outro’ (a etnologia, a psicanálise, a pedagogia), ou seja, nas formas epistemológicas que tomam por objeto um sujeito falante, é que os erros de interpretação da hiperobjetividade diabólica são mais visíveis em seus contornos paradigmáticos. Almeida (10), ao estudar minuciosamente a produção antropológica brasileira durante dez anos (75 a 85), aponta  os principais entraves epistemológicos da pesquisa a partir do incipiente diálogo entre ciência e tradição: o empirismo relativista, as interpretações paradigmatizadas e, por último, a incapacidade epistemológica de desenvolver uma integração criativa dos saberes que aponte para uma ética de reencantamento consciente do mundo.

 No empirismo relativista, o pesquisador se limita a uma descrição exaustiva da realidade estudada, especificada em todas as suas particularidades, sem nenhuma relação com o drama universal do ser humano. Tal atitude adicionada a tendência de especialização do saber, leva necessariamente a uma visão parcial e fragmentada da realidade. Assim, não só as descrições que desprezam a problematização, mas também os discursos especializados que não se enquadram em um contexto geral são resultantes desta atitude pretensiosa em que o pesquisador se apropria de um determinado aspecto dos discursos pesquisados em detrimento de outros, para ‘conservá-los’ em suas especificidades.

Nas interpretações paradigmatizadas, as teorias são utilizadas para explicar a realidade: seja reforçando diretamente a lógica da dominação, seja pela aparente crítica ao sistema que, no entanto, reifica a ruptura entre ciência e tradição. O marxismo ortodoxo, por exemplo, que lê o contexto a partir das categorias de modo de produção, luta de classes, capitalismo, excluindo de seu universo interpretativo o simbolismo genuíno dos discursos míticos, vistos sempre como representações ideológicas. Aqui, ao inverso do empirismo relativista, é o universal que é utilizado para mutilar o particular, a generalidade que serve para encobrir o específico.

 Segundo Almeida, ‘a nostalgia de um passado próspero das sociedades tradicionais em contraste com o presente atual de pobreza e exploração: o desencantamento do mundo’ resume a grande maioria dos trabalhos antropológicos contemporâneos, pois mesmo quando esses não descambam para o empirismo ou para o idealismo, eles continuam prisioneiros paradigmáticos da instituição científica, limitados ao estudo semiótico dos códigos e incapazes de sonhar um futuro alternativo para as sociedades que estudam. Assim, mesmo que não seja nem preconceituoso nem arbitrário, o discurso científico-moderno é sempre triste e inócuo.

A hiperobjetividade nos leva não apenas a três equívocos de interpretação, mas também nos afasta de nós mesmos enquanto sujeitos, através de três alienações presenciais: a do corpo, a dos sentimentos e a da própria identidade. Podemos encontrar essa concepção tripartida em diversos autores, tanto do ponto de vista epistemológico como em uma ótica cognitiva. O semioticista tcheco Ivan Bystrina, por exemplo, também distingue três níveis irredutíveis de transmissão e conservação de informação: o biológico (ou hipolingüístico), o cultural (ou a língua) e o imaginário (ou hiperlingüístico).
Em um outro contexto, mas de modo semelhante, o pensador alemão Dietmar Kamper diz que “a realidade é o sonho de Deus (que vivemos através do corpo); o mundo simbólico, os sonhos dos homens (compartilhado através da linguagem); e o imaginário, um sonho das máquinas, (de que participamos através da fantasia)” (11).

 Mesclando o fator cognitivo com o aspecto epistemológico, o antropólogo Bruno Latour (12) recolocou, recentemente e de forma abrangente, a questão dos três níveis irredutíveis como repertórios da atividade crítica.
  

“Os críticos desenvolveram três repertórios distintos para falar de nosso mundo: a naturalização, a socialização e a descontrução. Digamos, de forma rápida e sendo um pouco injustos, Changeax, Bordieu, Derrida. Quando o primeiro fala de fatos naturalizados, não há sociedade, nem sujeito, nem forma do discurso. Quando o segundo fala de poder sociologiazado, não há mais ciência, nem técnica, nem texto, nem conteúdo. Quando o terceiro fala de efeitos de verdade, seria um atestado de ingenuidade acreditar na existência real dos neurônios do cérebro ou dos jogos de poder. Cada uma destas formas de crítica é potente em si mesma, mas não pode ser combinada com as outras.  Podemos imaginar um estudo que tornasse o buraco de ozônio algo naturalizado, sociologizado ou descontruído? A natureza dos fatos seria totalmente estabelecida, as estratégias de poder previsíveis, mas apenas não se trataria dos efeitos de sentido projetando a pobre ilusão de uma natureza e de um locutor? Uma tal concha de retalhos seria grotesca. Nossa vida intelectual continua reconhecível contanto que os epistemólogos, os sociólogos e os desconstrutivistas sejam mantidos a uma distância  conveniente, alimentando suas críticas com as fraquezas das outras duas abordagens. Vocês podem ampliar as ciências, desdobrar os jogos de poder, ridicularizar a crença em uma realidade, mas não misturem estes três ácidos.”


 Nesta perspectiva, que discutiremos detalhadamente adiante, no segundo capítulo, é preciso superar essa tripartição estrutural da crítica e do conhecimento científico, é necessário transcender essa hiperobjetividade diabólica e tridimensional da modernidade.

  • A REFORMA DO PENSAMENTO
Edgar Morin é um dos personagens centrais da segunda metade do século XX, tanto no plano da vida como no das idéias. Sua militância política vai da resistência francesa contra o nazismo às barricadas do desejo de maio de 68. Descrever as idéias de Morin é um desafio angustiante, pois ele integra o seleto grupo de pensadores inclassificáveis. Ele próprio defende explicitamente esta qualidade da incerteza e da indefinição. Um pensamento homogêneo, integral, sem fissuras ou subdivisões internas; um pensamento preocupado com a revisão ética, estética e filosófica de nossa cultura e do conhecimento científico (13). Podemos, dividir seu trabalho em 3 períodos distintos (14).

De 1946 a 62, Morin teve pelo menos duas grandes contribuições ao pensamento contemporâneo: a) descortinar o desejo de supressão do tempo na ‘amortalidade científica’ em O Homem e a Morte (1951); b) e, a partir do mesmo ano, após ser expulso do PCF, ser o pioneiro na crítica do impacto que os meios de comunicação de massa têm na cultura ocidental em seus trabalhos sobre o cinema O Homem Imaginário (1956), As Estrelas (1957) e, principalmente, no livro O Espírito dos Tempos I - a neurose (1962) - o mais conhecido na área de comunicação social.

Em um segundo momento de seu trabalho, Morin quer conciliar a explicação estrutural e as possibilidades fenomenológicas de um humanismo, principalmente em Uma Introdução à Política do Homem (1965) e no Paradigma Perdido: a Natureza Humana (1973). Também nesse segundo paradigma, Morin dará outra importante contribuição à reflexão contemporânea discutindo pioneiramente o fenômeno da Contracultura como uma nova situação social, em O Espírito dos Tempos II - a necrose (1975) e em A Brecha (1979), escrito em conjunto com Claude Lefort e Cornelius Castoriadis.

Porém a grande importância de Morin está na sua proposta de revisão epistemológica e metodológica do conhecimento científico - ‘A Reforma do Pensamento’, compilada nos quatro volumes de seu principal trabalho teórico, O Método (15). Existem também, neste terceiro período, livros de divulgação científica (16) da Reforma de Pensamento, em que Morin defende o valor de uma racionalidade científica - a razão aberta - que absorva todas as contradições e impasses metodológicos atuais, superando as barreiras cognitivas que dividem o saber em disciplinas disjuntas e nos separam do ‘universo concreto’ das antigas tradições.

O retorno a este universo concreto das antigas tradições não significa um retrocesso em relação ao saber científico; ao contrário, cada vez mais aprofunda-se a consciência de que a agonia planetária que vivemos é resultado de um racionalismo tacanho e incompleto e que apenas reestruturando por completo nosso modo de vida podemos levar a frente nosso desenvolvimento.

Nos Métodos, Morin fundamenta a Teoria da Complexidade em três princípios que funcionam não apenas como postulados epistemológicos mas sobretudo como fundamentos éticos de uma nova conduta de vida: o princípio dialógico (ou a dualidade dentro da unidade (17), o princípio da recursividade organizacional (ou da causalidade circular) e o princípio da representação hologramática (segundo o qual o todo está contido em cada parte e as partes estão contidas no todo).

A partir destes três princípios podemos pensar em uma ética da solidariedade, que valorize o diálogo como conflito produtivo, que incentive a adaptação como forma de vencer as dificuldades e que sempre nos remeta à responsabilidade do universo em que estamos inseridos. A construção deste novo saber e de sua transmissão em uma nova pedagogia, dependem da superação epistemológica e cognitiva das três hermenêuticas da crítica moderna.

  • DA HERMENÊUTICA À COMPLEXIDADE
Em O Hermeneuta (18), defendi essa perspectiva: a tarefa metodológica contemporânea como uma arte de três diálogos e um monólogo. O diálogo entre as ciências humanas em torno de uma única realidade empírica como forma de combate a fragmentação do saber ou pesquisa interdisciplinar. A pesquisa intradisciplinar ou o diálogo entre as ciências de forma a evitar interpretações paradigmatizadas. E, por fim, a pesquisa extradisciplinar ou o diálogo entre ciência e tradição - onde nos permitiríamos sonhar um futuro.

O método hermenêutico é uma parte da fenomenologia que se destina ao estudo do simbólico. Ele consiste em quatro leituras complementares de um mesmo fenômeno: a primeira, objetiva e impessoal, observa e descreve o acontecimento; a segunda leitura é uma interpretação dos referentes subjetivos e pessoais; a terceira, paradigmática, é intersubjetiva e interpessoal, contrastando diferentes interpretações do evento; e, finalmente, a quarta e última leitura, arquetípica, transpessoal e transubjetiva, em que o sentido experiencial da linguagem é reconcebido e resignificado. São assim três leituras determinísticas e uma última leitura prospectiva resultante da transformação criativa da situação determinada pelas três primeiras leituras em uma nova possibilidade relacional.

 Uma lenda hebraica conta que quatro grandes rabis se dedicaram a estudos esotéricos e “entraram no paraíso”.  A estória afirma que “um deles viu e morreu; o segundo viu e perdeu a razão; o terceiro viu e corrompeu-se. Só o último rabi entrou e saiu em paz”. Poderíamos, parodiando a lenda, dizer que a palavra mata, o símbolo enlouquece, o exemplo perverte e apenas o arquétipo realmente explica e compreende a linguagem - pois ao comparar o real ao ideal, revela como a vida extrapola seus modelos.  Um exemplo: no arquétipo do pai, o complexo de Édipo é simultaneamente uma imposição, uma válvula de escape e um modelo estruturante para quem se coloca na posição de filho. Porém, apenas assumindo a posição de pai de outros é que vivemos o arquétipo e o transformamos. No caso, sendo um pai que reinventa o recalque, a sublimação e o exemplo a que foi submetido.

Entretanto, resvalei, reconheço, para uma concepção um pouco ‘platônica’ e ‘gnóstica’ das idéias ao defender o caráter transcendente dos arquétipos de uma forma ideal, como se eles fossem modelos estruturantes da interpretação (19).
 

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ARQUÉTIPO

Agora, trata-se de observar que além do conhecimento sígnico do eu, do conhecimento simbólico de si e do conhecimento paradigmático de mim, realmente existe um conhecimento do conhecimento, formado por padrões recorrentes de uma consciência universal trans-histórica e trans-psicológica, mas que essa consciência não é constituída por formas perfeitas e acabadas mas sim por incontáveis conflitos e acordos que se formam e desenvolvem através da comunicação e troca de informações. O arquétipo/protótipo, assim, é um padrão (patterns) ou uma forma abstrata recorrente no tempo-espaço, um universal-relativo, um algoritmo.

Não se trata de voltar a uma situação cognitiva pré-moderna, nem de interpretar cientificamente os paradigmas das culturas tradicionais, mas, ao contrário, o ressurgimento do simbólico pretende completar a descrição objetiva dos fatos com novas leituras suplementares - a interpretação dialógica e a análise compreensiva dos acontecimentos. E, assim, mais que um conjunto de leituras para decifração de códigos, a hermenêutica é um método de compreensão de si e dos outros, que estuda as relações humanas a partir de sua experiência pré-cognitiva.

Também não se trata, repitamos, de recortar, dividir ou separar. Muito pelo contrário: os três diálogos de reunificação do conhecimento são eixos de uma única metamorfose do saber, são as possibilidades de intercâmbio que o discurso científico tem para sobreviver. Eles, no entanto,  seriam insuficientes caso não fossem resignificados por uma última, solitária e definitiva leitura atualizadora, o monólogo ético, onde o universo reencontra sua auto-referência em uma consciência científica de si e em uma sabedoria ética sem ilusões. Trata-se, sim, de estabelecer as bases para construção de um conhecimento mais abrangente, ao mesmo tempo global e específico, analítico e sistêmico, objetivo e pessoal - um novo saber em que não haverá espaço para as atuais distinções epistemológicas.

E para tanto temos que reencantar o mundo, reinstituindo o sentido, não só da ciência e de nossa sociedade céptica e decadente, mas sobretudo de nossas vidas individuais. Pois é apenas nesta última leitura que está o patamar da re-significação ética da vida, que nos leva à consciência da consciência, ao Reencantamento do Mundo e à evolução do Espírito: a linguagem se ordena no Signo, se rebela no Símbolo, se repete no Paradigma, mas só se realiza na totalidade sempre incompleta da Vida. Ou na linguagem da teoria da complexidade: a Ordem hierárquica singulariza, a Desordem anárquica des-envolve, a Integração (da ordem com a desordem) estrutura a memória e os modos de interatividade; e, finalmente, a Organização garante a existência, ‘fixa’ uma rede, um sistema aberto de centros simultâneos, ao mesmo tempo solidários e concorrentes.

Assim, mais do que uma bioética, precisamos de uma ética do sentido total, que inclua do biológico ao técnico sem se reduzir ao humano ou ao social. A palavra ‘Semiética’ decorre dessa ênfase no aspecto Simbólico, ao contrário dos enfoques que acreditam que a Imagem detém um valor cognitivo primordial frente ao Signo e ao seu aprendizado. O ‘olhar’ não tem qualquer primazia sobre a ‘fala’; ao contrário: as formas discursivas são produzidas a partir de estruturas complexas ‘invisíveis’, os arquétipos, que formam uma determinada concepção de mundo ou ética. Daí o nome de ‘Semiética’ para denominarmos esta pedagogia hermenêutica do 'além-dos-códigos', em oposição às abordagens transdisciplinares que enfatizam a imagem ou que se limitem ao estudo metalingüístico dos códigos.

Também a Teologia da Libertação, em seu projeto de desinversão da dialética materialista, tem uma fórmula ética simples, que consiste em vencer os três pecados modernos, as provas diabólicas da parábola evangélica: o Ter, o Poder e o Ser.
 

O Ter - Ao se apropriar dos objetos, os homens acabam possuídos por eles. Na Semiética, devemos desenvolver e ensinar competências e não propriedades, isto é, relações de não dependência dos homens com as coisas. Ter sem sentir ter. Não se trata apenas de incentivar desapego ao patrimônio ou território, é preciso possuir as coisas com a aplicação dos amantes mas sem a possessividade dos apaixonados.
O Poder - Só quem domina a si mesmo pode dominar os outros (ou o governo da cidade depende do domínio de si). Desde os gregos, o ‘ocidente’ vive sob a ilusão desta associação entre o controle social e o auto-domínio ético. A Semiética, fiel a herança política da Contracultura, distingue a potência (capacidade) do poder (limite das competências).
O Ser - Objeção filosófica à antropologia: o ‘ser-humano’ não é distinto do ‘ser-das-coisas’. Assim, não basta deixar de ser o ‘dono do mundo’ e o ‘senhor de si’, na Semiética, o homem é um como seu meio ambiente. Os antropólogos da complexidade não aceitam cortes epistemológicos no Saber, mas se permitem essa diferença ontológica da vida moderna, fundamento do mundo desencantado.

O Território, o Poder e o Ser, no entanto, não são pecados humanos: eles também existem entre os outras formas de vida. As lutas territoriais, as sociedades hierarquizadas e as crises existenciais fazem parte do Ecosistema. Trata-se de pensar a cultura como uma máquina biológica humana, como um comportamento 'mamífero' que se singularizou diante de outras possibilidades e limites de desenvolvimento, dentro de um meio ambiente planetário.

Mas nem a Teologia da Libertação, nem a Antropologia do Conhecimento Complexo, nem o humanismo de uma forma geral, levam em conta a dimensão ética do Diabólico às suas últimas conseqüências: a construção de um discurso transdisciplinar (e transcultural) único, em que o Sujeito não se divorcie de seus Objetos e do Meio Ambiente. E este é resumidamente nosso projeto: desenvolver as relações entre diálogo/Território, causalidade circular/Poder e complexidade/Ser - transformando a divisão ternária do mundo em um único saber, ao mesmo tempo, lógico e deontológico, ou melhor, Semiético.


O HERMENEUTA
INDEX
PRÓXIMO CAPÍTULO

NOTAS:

(1) Novo Testamento Ver Lucas 8, 26; Mateus 8, 28; e Marcos 5, 1.Tradução apócrifa a partir dos textos grego e aramaico por Humberto Roden. São Paulo: Alvorada, 1993.

(2) Confira também outras versões do episódio em Marcos, 1, 12 e Lucas, 4, 1. Idem

(3)  Mateus, 4, 1-11; Idem

(4) REISLER, L. A Saga da Sabedoria. São Paulo: Nórdica, 1994.

(5)  PAGELS, E. As Origens de Satã. Rio de Janeiro: Ediouro: 1996.

(6) Sim, porque o diabo existe e se esconde, invisível, nos desafetos e nas paixões sob a forma psicológico de um ‘Outro-em-mim’ (Sartre/Lacan); porque, como vamos ver, esse símbolo se disfarça, imperceptível, em tudo que é reversível e nas diversas não-formas de um Arquétipo do Irracional.

(7) Mas Deus não morreu, apenas foi banido pela modernidade da natureza e da sociedade para “a intimidade do coração” – como diz Latour. E de que adianta trazê-Lo de volta? O mesmo pode ser dito do homem antropológico morto por Foucault e a sua suposta ressurreição como sujeito do desejo: não se deve reviver quem nunca morreu.

(8)  JUNG, C. AION: Um Estudo sobre o simbolismo do self. Petrópolis: Vozes, 1984.

(9)  SERRES, M. Filosofia Mestiça - le tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

(10) ALMEIDA, M. C. O saber antropológico - complexidades, objetivações, desordens, incertezas. Tese de doutoramento em ciências sociais na PUC/SP, 1992.

(11) BAITELLO, Norval. A Síndrome da Máquina in Ensaios  de Complexidade. Natal: Edufrn, 1998. Nesta lógica, é necessário não deixar que a imagem substitua o símbolo, que o imaginário socialmente produzido substitua a expressão onírica do inconsciente, que noção de ciberespaço/paraíso virtual substitua a idéia de utopia, de construção de uma sociedade melhor.

(12) LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos, ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: 34, 1994.

(13) PETRAGLIA, I. C. Edgar Morin. Petrópolis: Vozes, 1995.

(14) O mais correto seria dizer que Morin cruzou os principais paradigmas teóricos deste século: a epistemê weimariana, ou o projeto de sintetizar Freud, Marx e Nietzsche; a epistemê francesa, ou o projeto de conciliar estruturalismo e fenomologia humanista; e a epistemê pós-moderna, que estuda a complexidade.

(15) O Método 1 - A Natureza da Natureza. Lisboa: Publicações Europa-América, 1977; O Método 2 - A Vida da Vida. Lisboa: Publicações Europa-América, 1980; O Método 3 - O Conhecimento do Conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, 1986; e O Método 4 - As Idéias - Habitat, costumes, organização. Porto Alegre: Editora Sulina: 1998.

(16) Tais como Para Sair do Século XX (1981), Ciência com Consciência (1982) e Terra-Pátria (1993).

(17) E existe diálogo entre o Diabólico e o Dialógico? Para Paul Ricouer, sim; para Giles Deleuze, não.

(18) GOMES, M. B. O Hermeneuta - Uma Introdução ao Estudo de Si. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Natal: UFRN, 1996.

(19) CASTRO, G. (org.) Linguagens Imaginais e Complexidade in Ensaios de Complexidade.  Natal: Edfurn, 1998.