Paraísos Artificiais
  • Entheogênesis
Entheogênesis significa 'origem divina' (Theo = Deus, Gênesis = Origem). A palavra 'entheógenos', no entanto, surgiu em contraposição a denominação de 'alucinógenos' para designar a utilização de substâncias químicas com finalidades místicas, religiosas ou cognitivas. Segundo seus defensores a denominação de 'alucinógeno' para as susbstâncias químicas de feito psíquico, que provocam mudanças nos estados de percepção e consciência é preconceituosa, pois embute o sentido de entorpecimento e alienação.

A partir daí há dois sentidos possíveis:

  • A) A hipótese de que foi a ingestão de cogumelos alucionógenos que despertaram a consciência nos macacos.
  • B) A enteogênesis é o uso não alienante das drogas - como prescreveram vários pensadores da Contracultura. 
Timothy Leary, entre outros menos famosos, defendia o caráter revolucionário da experiência psicodélica através de drogas. Para Leary, os estados alterados de consciência provocavam mudanças existenciais profundas, tansformações na personalidade, tornando as pessoas mais conscientes de si. 

Também Carlos Castanheda (1), antropólogo convertido ao sistema de 'feitiçaria tolteca', iniciou-se nessa tradição através da utilização das 'plantas de poder', principalmente a Datura (a 'Erva do Diabo') e o Peyote (o 'mescalito'). A droga aqui é utilizada para romper com a descrição ordinária da realidade, com a percepção cotidiana de mundo, como uma forma de se sentir presente em outros universos dimensionais.

A droga alucina e cura, equilibra e enloquece, maravilha e vicia. É um paradoxo, um dispositivo de funções aparentemente contrárias. Entre os autores brasileiros que pensaram a questão das drogas dentro de uma perspectiva foucaultiana dos modos de sujeição, Edson Passetti (2) é talvez quem melhor coloque o papel central deste dispositivo na sociedade contemporânea.
  

            A droga é pensada como produto médico para recolocar um indivíduo dentro da normalidade social. É também alucionógeno capaz - quando usado fora do espaço de confinamento - de fomentar ou gerar no indivíduo distorções em sua personalidade. De ambos os lados, a droga afeta a chamada alma do sujeito, quer recuperando-a quer perdendo-a. Assim, dennntro da mais perfeita ordem das coisas, a droga é doença e cura, crime e lei, cujo uso é regulamentado por órgãos governemantais.

          (...) A relação droga e alma, essa coisa que pode ser racionalmente capturada, organizada e disposta para que o indivíduo possa viver uma suposta plenitude terrena, que as religiões não forncem - e justamente por esse princípio contribui para a reprodução da religião -, visa combater o desprezível no interior e no exterior do indivíduo, retificando partes ou o todo. (pp.56-57)


Com o pesquisador Terence McKenna, o caráter cognitivo das drogas e da experiência psicodélica na contracultura vai  se tornar uma 'etnofarmacologia', isto é, em um estudo sistemático das tradições de consumo de entheógenos. McKenna - autor de diversos livros sobre drogas e religiosidade contemporânea (3) - retoma a associação entre a utopia social e os estados de consciência quimicamente alterada (proposta por Charles Baudelaire e Aldous Huxley) e desenvolve ainda a idéia de que nossa experiência com o sagrado deriva do consumo de substâncias químicas e a combina com a hipótese Gaia (4) e com um desconcertante arsenal de perguntas: 
 
  

"Estaríamos ainda evoluindo as leis eternas da natureza? Existiria um reino além do espaço e do tempo que asseguraria os padrões e as condições de criatividade e de organização, e o processo evolutivo emergente - ou o universo se construiria a si mesmo à medida que fosse caminhando? As causas das coisas estariam no passado ou no futuro? Haveria algum Objeto hiperdimensional, que nos atrairia para a frente ? . Seria a história apenas uma sombra que a escatologia projeta atrás de si? Seríamos nós, os seres humanos, os imaginadores ou os imaginados? Ou seria a história, de certo modo, uma co-criação - uma parceira instável, cronicamente evolvente e pusilânime entre nós mesmos e o Fazeror de Padrões hiperdimensionais? Seriam os vegetais visionários nossos potenciadores e nossos guias; e seria a teobotânica a chave de tudo isso? Seria o caos meramente caótico, ou abrigaria a dinâmica de toda a criatividade? Que conexão existiria entre a luz física e a luz da consciência? Como transporíamos nossos limites fundamentais a fim de ingressar numa nova fase de aventura humana?" (5)
É bem verdade que as idéias de McKenna estão dando margem para toda sorte de teorias delirantes. Para alguns, por exemplo, o cogumelo entheogênico seria apenas o corpo físico de um ser vindo de outro planeta para colonizar a terra, um veículo biológico da memória arcaica. Ou ainda: 'O cogumento é Jesus Cristo' - como diz Peter Lamborn Wilson  em  Cibernética e Enteogênese. Por outro lado, é claro que os grupos tradicionais discordam dos psiconautas. E sobre isso há debate interessante ainda em curso. Alex Polari do Santo Daime brasileiro, por exemplo, escreveu Eram os Deuses Alcalóides?

Porém, o certo é que, a partir do advento 'Terence McKenna', há todo um movimento em curso sobre essa história de Entheogênesis. Atualmente, na internet, tanto encontramos páginas dos grupos religiosos ligados a tradições xamânicas com a Ayahuasca  quanto de psiconautas e estudiosos. Em um rápido levantamento, além de numerosos sites comerciais, descobrimentos duas revistas especializadas (Entheogen.com e The Resonance Project (TRP)), três bibliotecas virtuais (The Lycaeum, Religion and Psychoactive Sacraments e The Vaults of Erowid), duas ONGs com conotações políticas (The Drug Reform Coordination Network e The Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) e uma comunidade virtual (The Island Web).

Hoje é mais fácil encontrar trabalhos espirituais com a utilização da Jurema (6) na Europa que nas caatingas do nordeste brasileiro. Um prova disto é a reconstituição da fórmula secreta da beberagem dos índios nordestinos por uma ONG holandesa, a Friends of the Forest, que trabalha com recuperação de viciados e crescimento pessoal através de entheógenos. Vivemos um processo que a consciência étnica é reimportada.


O HERMENEUTA
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BIBLIOGRAFIA GERAL

NOTAS

(1) Para um levantamento completo das principais páginas sobre Castanheda, clique aqui.

(2) PASSETTI, E. Das 'Fumaries' ao Narcotráfico. São Paulo, EDUC, 1991.

(3) MCKENNA, T. -  'Alucinações Reais', 'Alimento dos Deuses' e 'Retorno à cultura arcaica' Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993, 1995 e 1996. Em inglês, há ainda os livros em parceria com seu irmão Dennis McKenna, The Invisible Landscape e Psilocybin: The Magic Mushroom Grower's Guide.

(4) Segundo McKenna, 'o ciberespaço é a hipermente de Gaia'; não é 'uma mecanosfera deleuziana', mas uma inteligência planetária anterior às redes maquínicas, semelhante ao Cibionta nos textos mais recentes do biólogo Leon de Rosnay.

(5) MCKENNA, T. 'Caos, Criatividade e o retorno do Sagrado - triálogos nas fronteiras do Ocidente' (em conjunto com Ralph Abraham e Rupert Sheldrake) São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.

(6) Há também, sobre o uso contemporâneo da planta e sua tradição, um texto que editamos: A JUREMA NO "REGIME DE ÍNDIO": O CASO ATIKUM, de Rodrigo de Azeredo Grünewald. A bibliografia sobre Jurema é excelente.

(7) DMT World's.