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‘Espelho, espelho meu, existe
algum intelectual mais sabido do que eu?’ Num primeiro nível, a
reflexão sobre o espelho sempre será um questionamento do
ego sobre si mesmo. Mas o espelho nunca responde, ou melhor nunca discorda,
ao contrário, seu silêncio eternamente cúmplice se
faz íntimo das mais desmesuradas comparações.
Entretanto, é este primeiro momento de reflexão, embora sempre reafirme a identidade, que revela a objetividade do subjetivo, pois permite que o observador se observe, imaginando como será visto pelos outros. E desta reflexão primeira da consciênca é que (re)surgem as grandes idéias e os grandes empreendimentos. “Realidade ou alucinação, os mundos ordenados com estes instrumentos de precisão revelam a reversibilidade de todas as coisas: a certeza do aparente, a incerteza do existente.” Aqui o Espelho é comparada a um grande lago de águas límpidas e cristalinas, como um campo projetivo da experiência humana, onde o homem pensa e repensa sua identidade. Rompendo com esta primeira
perspectiva estética, o tema de entrar através do Espelho
em um mundo imaginário, presente, por exemplo, em Alice de Lewis
Carroll, tornou-se lugar comum na atualidade, principalmente em Vídeo-Clips
de bandas de rock e filmes de ficção cientifíca. Interessante
é observar que este ‘mergulho no inconsciente’ sempre parece demarcar
os limites a realidade virtual e a vida cotidiana, para a qual o protagonista
sempre volta ao final da narrativa. É uma fuga do ego para fantasia
e seu invariável retorno. Em muitos casos, o tema do espelho se
confunde com o símbolo do Sósia, do Outro, do Duplo.
Entre os tibetanos, a Sabedoria do Grande Espelho ensina o segredo supremo: que o mundo das formas que ali se reflete não é mais que um aspecto do sunyata, da vacuidade. Patanjali chamou esse conhecimento de ‘fluxo imóvel’ e não são raros relatos semelhantes dos místicos de diferentes tradições. Para eles, o Espelho é símbolo da transcendência temporal, da a-historicidade, da superação da continuidade da percepção sensorial pelos lampejos da eternidade. Poderiamos, então, concluir que o mitos do Espelho simbolizam a própria representação, não se constituindo ou representando um único arquétipo, mas a própria noção de ‘inconsciente coletivo’ ou de unidade fundamental da experiência simbólica. Representando a própria representação, os espelhos são símbolos da realidade simbólica, são, assim, imagem paradigmática ou um dispositivo complexo, cuja a ambivalência expressa sempre um paradoxo: verdade absoluta e ilusão passageira, beleza superficial e profunda sabedoria, arma e remédio, alienação social e reintegração psíquica, etc, Mas se vemos no Espelho este emblema de alma coletiva, ou pelo menos, se encontramos nele um símbolo da cultura ou a metáfora mais abstrata e paradigmática da linguagem, podemos comparar seus reflexos sintagmáticos aos arquétipos, pois enquanto o dispositivo especular enfatiza a diferença, seus espectros sempre reafirmam a identidade simbólica. Em si, os reflexos nunca são ambivalentes, eles são apenas imagens duplicadas. Já o Espelho não é uma simples estrutura duplicadora porque contextualiza e até transforma a realidade, uma vez que remete o observador a uma contemplação do conjunto da representação. Enquanto os reflexos nos encantam e nos enganam como identidades arquetípicas, o Espelho representa a consciência de que essas identidades são passageiras e parciais. O Espelho é um convite à eternidade, como, aliás, sugerem as muitas lendas que o associam à longitividade e à manutenção da beleza por meios sobrenaturais, das quais O Retrato de Dorian Gray é certamente a mais conhecida. Muito ainda poderia ser dito sobre os espelhos e sua vastíssima simbologia, porém já reunimos os elementos necessários a análise da lenda nagô a que nos propomos inicialmente. Voltemos agora, portanto, ao mito do Espelho de Oxum. |