Um Objeto Singular

 O espelho aparece em inúmeros mitos e ‘reflete’ um sentido claramente universal porque tem um valor cognitivo e epistemológico. Ele é um símbolo da consciência. Consciência entendida não apenas como ‘auto-imagem social ou profissional’, mas, sobretudo como identidade psíquica profunda, a verdadeira face sob as máscara do ego, a centelha luminosa, o reflexo interior do Fiat Lux. 

Platão e Plotino o comparavam à alma, metáfora que em seguida foi adotada por Santo Atanásio e Gregório Niseno. Mas é com São Paulo que o Espelho se torna um valioso símbolo de transformação, um duplo instrumento para o conhecimento antropomórfico de Deus e para o conhecimento cosmológico do Homem.
 

 “E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como em um espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa  mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é o Espírito. (...) Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face a face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido.”

 Mas se o Espelho é símbolo do auto-conhecimento místico, da imagem e semelhança onde o Homem e Deus se refletem, ele também aparece constantemente como metáfora da ilusão narcísica, como confidente da beleza egóica, como um reflexo invertido da realidade. O símbolo da verdade é, ao mesmo tempo, signo da falsidade e da ilusão. E certamente foi este caráter paradoxal e contraditório que criou ‘O fascínio dos Espelhos’.

  Das inúmeras narrativas onde este fascínio se manifesta escolhemos o mito nagô do Espelho de Oxum, originariamente recolhida por Pierre Verger na África , pois ele apresenta vários elementos simbólicos importantes para caracterizar o funcionamento arquetípico dos mitos que constituem o dispositivo especular e sua estratégia epistemológica. Antes, porém, de analisar os diversos aspectos simbólicos desta lenda mítica, vamos estudar como o tema do espelho se manifesta em outras narrativas de diferentes culturas, procurando identificar suas relações com um arquétipo único, que possa esclarecer o papel universal que o Espelho desempenha na lenda nagô.