Sempre fomos Cyborgs
E mais: esta planetarização não se desenvolve centralizadamente pelo uso coercitivo da força nem pelas 'necessidades econômicas da produção', mas sim de uma forma aparentemente descentrada e consensual, sempre enfatizando o declínio da esfera pública frente a sociedade civil, seja na versão neo-liberal de um 'ajuste' econômico voluntário dos países periféricos sub-industrializados ao programa privatizador e ante-protecionista do FMI; ou (por outro lado, mas no mesmo sentido) no movimento das ONG's em torno da ecologia e dos direitos humanos, que, herdeiras da desobediência civil das barricadas do desejo, sonham com uma nova Utopia: um Estado sem administração, um governo em que todos os serviços públicos seriam terceirizados e em que o executivo fosse um mero coordenador de concorrências. Este estranho processo de homogeneização descentrada das culturas, este fenômeno bizarro da tribalização massificada - a que uns chamam de globalização e outros, pós-modernidade - só pode ser compreendido através de seus fragmentos, nos quais o global se reflete e se atomiza. É a realidade fractal que impõe um olhar ao mesmo tempo histórico e transdisciplinar. A arquitetura, sempre invocada como um critério absoluto sobre a definição de movimentos e estilos culturais (barroco, romântico, moderno), pode ser de grande valia para entendermos esta faceta da Contracultura. A arquitetura pós-moderna não possui traços comuns, mas ao contrário, caracteriza-se pela mistura de estilos e de materiais, em uma bricolage funcional voltada para a satisfação do homem e para o equilíbrio ambiental. Assim, por exemplo, há bem pouco tempo não existia tecnologia específica para construir uma edificação grande em determinado local pantanoso (pois seguia-se padrões estéticos e técnicos limitados), hoje, cruzando-se diferentes técnicas de construação que existiram em outros locais e em outras épocas, é possível a definição de um projeto para qualquer espaço. Tomados esses critérios, não é difícil ver nas artes e no pensamento contemporâneos essa mesma possibilidade múltipla e plural. Se não podemos definir a pós-modernidade como um réquiem fúnebre da sociedade industrial, podemos ao menos delimitá-lo como um movimento cultural sem estilo ou estética definidos, marcada pela bricolage criativa, por esta universalidade estilhaçada em diferentes singularidades. É o sincrético sem síntese: o real como mosaico. Em breve, automóveis e aviões serão monitorados pela Internet através de satélites de microondas e as telecomunicações do planeta serão reorganizados em redes. As novas formas de telefonia móvel que surgem, a partir do marketing interativo de 'estratificação segmentada' da cultura de massas de cada país, estão formando públicos internacionais especializados. E nesta conjuntura múltipla e globalizada, o intercâmbio em tempo real, o estudo operacional dos códigos das redes passará a desempenhar um papel central de mediação entre as culturas. Um novo saber, uma nova ética de caráter semiótico está surgindo não apenas como campo epistemológico entre a biologia, física e psicologia social, mas sobretudo como um saber contemporâneo reencantado: a arte/ciência geral do intercâmbio e das trocas e como uma prática de multiplicação e sincronia do tempo social. Por outro lado, no que diz respeito à intencionalidade: "Nada há de novo sob o sol". Antigamente, quando se estava com fome urrava-se; quando se queria uma fêmea, uiva-se; e quando se queria lutar contra um inimigo, rosnava-se. Hoje, quando se quer conquistar uma companheira, o homem escreve um poema; para se alimentar, redige um projeto; e, para fazer frente a um inimigo, publica uma matéria jornalística. De forma que o homem continua lutando com a fome, com as mulheres e com seus desafetos - ou com os três códigos primários de Levi Strauss. Nas últimas décadas, as duas concepções de Cultura que estiveram em voga - a Holística (a cultura humana é a totalidade e esse todo é mais que a soma de suas partes nacionais e étnicas) e a Complexa (o todo cultural é, ao mesmo tempo, mais e menos que a soma de suas partes fractais) - pregavam o Reencantamento do Mundo, ou seja, que não basta desmistificar a cultura, é necessário resignificá-la em cada leitura. Somos parte da realidade cultural que estudamos como um sistema aberto e vivo. E para definir este período de reencantamento cultural, que uns chamam globalização e outros, pós-modernidade; prefiro a noção de Cibercultura. No prelúdio do século, Benjamim distinguiu duas sensibilidades modernas: a do livro (da sofisticação formal das vanguardas, da concentração, do esforço cognitivo que 'entra no discurso') e a do cinema (da diversão distraída das massas, do espetáculo, do entretenimento em que 'o discurso entra em seu receptor'). A cultura de massas era vista como um retorno ao audiovisual, ao universo anterior à comunicação inscrita. E essa mudança cognitiva já separava o mundo entre Apocalípticos e Integrados. Hoje as perguntas que se colocam são as seguintes: o retorno a linguagem audiovisual através da informática está criando uma terceira sensibilidade? E a progressiva segmentação do mercado consumidor e a interatividade estão realmente democratizando a cultura de massas ou apenas instaurando novos modos de manipulação? O microcomputador é a síntese multimídia da cultura de massas com a cultura escrita? Houve uma transformação antropológica? Ou a internacionalização desencadeada através da comunicação de massas a nível planetário foi apenas um processo contínuo e gradativo de mudanças históricas quantitativas? Nunca fomos 'diferentes' das outras culturas ou nosso comportamento frente ao seu meio ambiente realmente se modificou radicalmente? Para entendermos as mudanças, a permanência e as diferentes concepções contemporâneas sobre Cultura será preciso antes compreender a Modernidade e o que podemos fazer para ultrapassá-la defintivamente.
Assim, ainda
que sejamos nós que construímos laboratoriamente a natureza,
ela funciona como se nós não a construíssemos, como
'uma coisa-em-si'. Por outro lado, ainda que não sejamos nós
que construímos a sociedade, ela funciona como se nós a construíssemos.
A constituição moderna seria um duplo artifício de
simulação entre a Natureza e a Sociedade, em que o poder
científico representa apenas as coisas e o poder político
representa somente os homens. Eis, portanto, a dupla potência da
crítica moderna: uma ciência sem necessidades sociais &
uma política objetiva e justa. A natureza explica o que é
verdadeiro; a sociedade, o falso. Mas, na verdade, ao separar as relações
políticas das científicas - mas sempre apoiando a razão
sobre a força e a força sobre a razão - os modernos
sempre tiveram duas cartas sob as mangas: uma natureza selvagem e inútil
(sem sociedade) e uma sociedade artificial e morta (sem natureza).
A separação total entre Natureza e Sociedade não explica nada, ao contrário, ambas as esferas (tomadas como sistemas abertos irredutíveis) é que precisam ser explicadas a partir de seus produtos híbridos. Para Latour, a constituição moderna ostenta um trabalho de purificação (separação do natural do social) mas esconde um trabalho de mediação (unificação dos pólos na produção de híbridos). Assim, bastará oficializar a produção de híbridos através de algumas emendas constitucionais para nunca termos sido modernos, nem ocidentais ou mesmo singulares em relação a outros coletivos. Aliás, a própria idéia de revolução, de rompimento absoluto com um passado ultrapassado, é, para Latour, uma ilusão moderna: a Natureza está no passado e a Sociedade, no futuro. No presente, a cultura moderna depende da continuidade do tempo histórico e de cortes epistemológicos a que estruturem como algo diferente. O mundo é feito de 'coletivos', híbridos de natureza e sociedade, e a única diferença entre eles é de tamanho. Para ele, "é a seleção que faz o tempo e não o tempo que faz a seleção". Infelizmente, a questão da modernidade não é tão simples. Mesmo que nos coloquemos no paradigma da descontinuidade absoluta, nunca haverá uma indiferenciação cultural capaz de esconder a singularidade histórica do ocidente diante de outros povos. Por isso, para não ser moderno, também é preciso negar a herança cultural judaico-cristã e a própria noção de civilização ocidental. Mas é a singularização de uma cultura em relação ao conjunto planetário é que permite sua hegemonia sobre outras. É possível
distinguir as leis naturais das convenções sociais? Não.
Natureza e Sociedade são pólos de uma única Cultura.
E conservar as luzes sem a modernidade, é possível? Sim.
Como? Através de universais relativos, agenciamentos em redes e
da 'delegação', uma transcendência sem oposto ou devir.
Neste raciocínio, Natureza e Sociedade são imanentes no trabalho
de mediação e transcendentes no trabalho de purificação.
Assim, para Latour, os modernos alimentam um estranho gosto pela marginalidade: ou são objetivos, ou subjetivos; ou locais, ou universais. "A defesa da marginalidade supõe a existência de um centro autoritário". Para nós, esta opção quer desmistificar a idéia de um centro sagrado (e não de ocultação dos híbridos) e de ver o mundo diabolicamente, do lado de fora. É por isso que enfatizamos a unidade do conjunto das redes, o ciberespaço; e não as redes enquanto estruturas rizomáticas. Longe de nós, no entanto, a intenção de afirmar que essa unidade noosférica sempre existiu na forma de uma 'alma do mundo' medieval ou do inconsciente coletivo junguiano. Aliás, o Cibionta não é um leviatã digital. Ao contrário: a existência material de uma memória arcaica biotecnológica só foi possível através de uma ruptura histórica com a noção de pacto social, desse consenso anti-natural, que caracteriza a modernidade. Vejamos agora como foi essa ruptura.
Com a crise
feminina, descobriu-se que para alterar a forma predatória pela
qual o ser humano explora a natureza, não bastará extinguir
a exploração do homem pelo homem como ressaltavam os marxistas,
mas também a exploração do homem sobre as mulheres.
E esta associação entre o feminino e a natureza no campo
político é uma das características culturais da pós-modernidade
que mais seria preciso acentuar. No paradigma patriarcal, o discurso feminino
estava sempre ligado à necessidade, à terra, à explicação;
enquanto o masculino reconhecia-se no sonho, nos céus e no planejamento
do futuro. Talvez por isso, o materialismo tenha sido tão invocado
pelos dominados e os mitos vezes sido considerados ideologia dos dominantes
- porque essas funções discursivas da linguagem enraizavam-se
no modelo arcaico da dominação ao nível das relações
de gênero. Dessa forma, esta primeira crise, que acontece ao nível
dos códigos de parentesco, da 'troca de mulheres', ativa uma segunda
instância a nível da produção de
Com a crise juvenil, os valores da juventude, antes reprimidos como irresponsabilidade e rebeldia tornaram-se paradigmáticos sobre múltiplos aspectos. A revolta contra as instituições e a metalinguagem transformam-se em modelos universais de comportamento. Não se trata apenas de uma ética da desobediência civil ou de uma geração de viciados em sexo, drogas e rock and roll, mas também de um culto ao corpo e a saúde e do esoterismo apocalíptico da Nova Era. Nos dois casos, a juvenilização marca uma vitória da cultura de massas contra as resistências populares e eruditas. Da mesma forma
que a crise feminina apontava para uma mudança nas relações
sociais de parentesco e a crise juvenil para uma renovação
da linguagem e dos códigos semióticos e lingüísticos,
a crise ecológica é econômica pois a marca a mudança
do valor uniforme-serial pela noção de biodiversidade, da
des-industrialização dos países ricos e a administração
do consumo mundial. Este processo de globalização da economia
não só leva às estratégias de exclusão
tecnológica como novas formas de controle, mas também abre
a possibilidade de uma cultura planetária e de um novo paradigma
cognitivo: a comunicação de cada um com todos.
No Cenário Moderno, há três manifestações culturais distintas quanto ao público, a estética e a forma de produção: a cultura de massa, a cultura de elite e a cultura popular. A cultura de massas, é o produto da reprodutividade técnica e da industrialização cultural; a cultura popular, a expressão artesanal de diferentes resistências regionais à industrialização; e a cultura de elite, um culto à sofisticação formal e à hipersensibilidade, que crê na técnica apenas como habilidade e virtuose. Já no Cenário Contemporâneo, após o advento da Contracultura, encontramos no cenário contemporâneo uma cultura planetária estilhaçada em diferentes esferas ou bolhas-locais, onde a história se refrata e se fractaliza, segundo os interesses do consumo e do capital. A cultura de massas absorveu as culturas popular e de elite, eliminando quase todas resistências locais a sua supremacia global. Aliás, todas as resistências ao consumo massificado transformaram-se em mercados segmentados de consumo alternativo (diet, light, cult, etc) O slogan revolucionário 'É proibido proibir' virou anúncio de cigarros. Três culturas (popular, elite e de massa) e três cenários (moderno, contraculutral e contemporâneo) geram três crises (Feminina, Juvenil e Ecológica) e resultam em três singularidades decisivas da atualidade: a globalização, a pósmodernidade e a cibercultura (ou sociedade de controle). E é aqui que a 'reforma do pensamento' defendida por Morin se encontra com as emendas constitucionais propostas por Latour. Constituição moderna/Constituição não-moderna
O Ciberespaço é formado por redes e conexões, não apenas entre os pólos natural e social, mas, sobretudo, entre o 'micro', os contextos interpessoais localizados, e o 'macro', as generalizações impessoais. Menos universal e abstratas que os sistemas e menos concretas e circunstanciais que os fractais, as redes do Ciberespaço são também agenciamentos intermediários entre o local e o global. É como afirma Latour: "As redes são produtos do duplo trabalho de mediação (combinação simultânea dos dois pares de opostos) e de purificação (separação sistemática dos quatro pólos)." Para os modernos: o que é verdadeiro é explicado pela Natureza e o que é falso é explicado pela Sociedade. Mas para a pesquisa do Ciberespaço não existem nem uma 'ciência' sem necessidades sociais nem muito menos uma 'política' objetivamente justa. a pesquisa do Ciberespaço rompe com este duplo artifício 'moderno' de simulação entre a Natureza e a Sociedade, em que o poder científico representa apenas as coisas e o poder político representa somente os homens. Pierre Levy deve ser considerado um dos principais teóricos desta nova cultura virtual. Segundo esta concepção, a cultura não é apenas uma memória dos acontecimentos passados, mas também um projeto permanente de auto-organização para o futuro; não apenas um conjunto de marcas e registros, mas, sobretudo, um sonho coletivo irredutível ao desencanto científico, a próxima etapa possível de evolução da vida na sociedade humana planetária: a tecnodemocracia ou ecologia cognitiva. Para Levy, ecologia e solidariedade passam muito mais por um redimensionamento das desigualdades cognitivas que de uma redistribuição material das riquezas ou de uma reorganização das relações internacionais de força. Inicialmente
(3), sua reflexão pretende englobar a imagem, a escrita e o fenômeno
da codificação da linguagem e do ruído como produtores
de complexidade, distingue três ‘pólos tecnológicos
da inteligência’: a Oralidade, a Escritura e a Telemática.
O polo da Oralidade (Primária) é caracterizado pelo Mito
e pela linguagem enraizada no corpo e pelo ‘eterno retorno’ de um tempo
circular e cosmológico. O polo da Escrita marca a formas de armazenamento
não biológicas de informação. Com a Escrita,
surgirão a história e o projeto científico de organização
sistemática do conhecimento. E o polo da Informática, em
que as características dos dois pólos são contidas
e transformadas.
Os pólos, no entanto, não são simplesmente etapas ou eras cronológicas, mas sim modelos que se sobrepõem uns aos outros. Em seus trabalhos mais recentes (4), para Levy, o ciberespaço é um estágio avançado de auto-organização social ainda em desenvolvimento (a inteligência coletiva), o Espaço do Saber, em que o conhecimento seria o fator determinante e a produção contínua de subjetividade seria a principal atividade econômica. Levy define ciberespaço como o quarto espaço antropológico, sobrepondo-se à Terra, ao Território e ao Mercado. Os Territórios são virtualização da Terra; a Mercadoria é uma virtualização dos Territórios; e o saber, uma virtualização das Mercadorias. O virtual é um produtor/produção da desterritorialização do espaço físico e da materialização do imaginário. Possivelmente ele começou com a escrita, com a possibilidade de uma informação transcender tempo e espaço. Assim, nesta segunda etapa de seu trabalho, ao invés de três pólos ou tecnologias, Levy vai falar de quatro espaços antropológicos (ou níveis históricos e simultâneos de virtualização): o aparecimento do vida sedentária, da agricultura, dos deuses solares, da escrita, do direito e das primeiras cidades é uma desterritorialização da vida nômade sobre a terra; da mesma forma, o surgimento das mercadorias (e da moeda) e do capitalismo será uma desterritorialização das sociedades que se organizam como estados-nações; e, consequentemente, o advento do Ciberespaço é uma virtualização do Mercado. Desta forma, nem tanto para rupturas históricas irreversíveis de Morin nem tanto para eterna mesmice humana de Latour, os espaços de levy sobreponhem-se uns aos outros e estamos vivendo em uma realidade nova (a cibercultura) intrinsecamente associada não só a modernidade e a lógica da mercadoria, mas também ao universo territorial do feudalismo e às tradições nômades.
Pobres modernos! Prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passam de bolinhas de carne girando em uma bola de pedra em torno de uma grande bola de fogo. Que pobres e tolos que fomos! Nos acreditando superiores a todos os outros povos e culturas por adorar um deus morto e separar criteriosamente a Natureza (da qual detínhamos o domínio técnico) da Sociedade (que nos produz irreversivelmente limitados pelo consumo). Eis o destino moderno: ao tentar dominar a Natureza, foi escravizado pela Sociedade. Mas, deixemos de autocomiseração! Nem a civilização ocidental, nem nós, seus híbridos subdesenvolvidos das antigas colônias, merecemos tanta piedade. Afinal, até bem pouco partilhamos deste sonho insípido de destruição planetária: a modernidade. Diante de uma constatação tão aterradora, a de nunca fomos culturalmente superiores, há quem prefira nunca ter sido moderno, como Latour, escapando assim da responsabilidade social e política em relação à agonia planetária e à situação dramática em que nos encontramos. O compromisso ecológico e a ética de solidariedade planetária são resultantes desta terrível constatação e da necessidade da reunião simbiótica do natural e do social em uma nova cultura: o Ciberespaço. Ao defender a tese de que nunca fomos realmente modernos, Latour deseja lembrar que nada de fato mudou. Apenas acreditamos, por menos de 300 anos, que poderíamos separar as leis da natureza e nossa vida em sociedade, escondendo o caráter híbrido de nossa própria cultura. Mas, enquanto Latour crê que apenas com algumas reformas na constituição da modernidade serão suficientes para superar o divórcio entre Natureza e Sociedade, prefiro acreditar que houveram mudanças irreversíveis (a re-evolução contracultural iniciada nos anos 60), que os pólos estão definitivamente confundidos na Cibercultura e que é precisamos, todos nós, assumir os erros do passado: fomos modernos e agora devemos deixar de sê-los. Seduzidos pelo desencantamento diabólico do mundo, acreditamos na ciência e negamos o sonho e a imaginação! Fomos modernos, não há como negar. Porém, resgatando o essencial do pensamento antropológico de Latour para o contexto teórico contemporâneo, o que poderíamos dizer sem medo é que sempre fomos ciborgs. Sempre utilizamos de artifícios diante do mundo, de ferramentas desnaturalizantes, de instrumentos e máquinas como extensões mecânicas do corpo. O homem se desnaturalizou através de seus apetrechos mas não há nada de 'moderno' ou de 'ocidental' nisso. Mas só agora, após a contracultura e a planetarização, é que assumimos nossa simbiose e nossa hibridez. A chegada dos terminais inteligentes marcam o fim da era da memória local e o início do império do Ciberespaço, como memória de rede de homens e máquinas. Houve uma ruptura com cultura moderna, uma mudança estrutural nas formas de 'dominação da natureza' e da 'exploração do homem-pelo-homem', mas as práticas de dominação ambiental e a exploração humana ainda perduram. E nada nos garante que o ciberespaço (ou o 'cibionta' de Rosnay, a 'inteligência coletiva' de Levy ou essa nova representação ampliada às coisas proposta por Latour, o 'parlamento das coisas') nos levará a uma sociedade melhor ou se são apenas reformas parciais dos antigos modos de controle, um aperfeiçoamento simbiótico para dupla manipulação diabólica (social e natural) da modernidade. Ecologia e solidariedade passam muito mais por um redimensionamento das desigualdades cognitivas que de uma redistribuição material das riquezas ou de uma reorganização das relações internacionais de força. A Cibercultura veio para ampliar a democracia cognitiva iniciada pela comunicação de massas e, ao mesmo tempo, também para reificar as relações de poder da sociedade de consumo. Por isso, nossa relação interativa com as novas formas de interatividade é que nos revelará se as novas tecnologias vão ser utilizadas para uma sociedade melhor ou se são somente mais um modo para manipulação social. |
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(1) LATOUR, B. Jamais Fomos Modernos, ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.
(2) MORIN, E. Cultura de Massas II - O Espírito dos Tempos (Necrose). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1977.
(3) LEVY, P. Tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
(4) LEVY, P. A Inteligência Coletiva - por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998.